Sinceros como não se pode ser

Salvador Allende, Tallis Gomes e os CEOs influenciadores

Pessoas públicas podem se dar a muitos luxos, mas entre eles não está o da sinceridade absoluta

Quando foi candidato à presidência do Chile pela primeira vez, em 1964, o socialista Salvador Allende (1908-1973) encomendou aos seus assessores um speech para o evento de oficialização de sua chapa. Ao subir no palco, sob aplausos e gritos eufóricos de correligionários, não conteve a emoção e bradou: “Tenho aqui um discurso que meus colaboradores prepararam. (Mas) não posso nem quero ler um discurso escrito. Quero lhes falar direto do meu coração…”. Ato contínuo, jogou as páginas para cima e, para delírio da multidão, iniciou um pronunciamento idêntico àquele que constava nos papéis.

A anedota chilena seria apenas uma boa história se não contivesse também uma lição: pessoas públicas podem se dar a muitos luxos, mas entre eles não está o da sinceridade absoluta. E o caso Tallis Gomes vem a comprová-lo. Para quem não lembra, o então CEO da G4 Educação foi alvo de cancelamento, no fim do mês passado, ao se dizer contrário a ter uma esposa no cargo máximo de uma empresa. A repercussão da declaração, numa postagem de Instagram, obrigou-o a renunciar ao comando da companhia que fundou – ironicamente, em favor de uma mulher. E por mais que a mensagem tratasse exclusivamente da vida pessoal do autor – ele não dizia se negar a empregar mulheres em posições elevadas, apenas não queria ser casado com uma delas –, o rótulo de machista já lhe estava pespegado.

Numa era em que CEOs se jactam de atuar como influenciadores, a pretexto de promoverem suas empresas e valores positivos, a tentação de transpor tudo o que vem à mente para redes sociais é grande – até porque a tal “autenticidade” é um dos atributos que tornam esses personagens atraentes.

O problema é que “ser totalmente transparente – revelando cada pensamento e sentimento – não é apenas irrealista, mas também arriscado“. A afirmação, pensada para a vidinha corporativa do dia a dia, aquela entre colegas, subordinados e superiores, ganha ares de advertência séria para quem, além do trabalho cotidiano, tem pretensões que ultrapassam os muros das empresas, mas não deixam de estar atrelados a elas – afinal, só se tornaram influenciadores porque ocupam posições de prestígio, e não o contrário.

Convém que os departamentos de comunicação preparem um manualzinho para uso de redes sociais e manifestações públicas, o qual preveja que, a exemplo de qualquer media training para candidato ou ocupante de cargo público, deve-se falar ou escrever o que a plateia quer ler e ouvir – e se for ao estilo Allende, do fundo do coração, melhor ainda.

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