Jandir Dalberto, empresário e sócio do Di Paolo, relata neste artigo exclusivo o desafio de expandir e escalar marcas enquanto se mantém a qualidade e agrega valor
A alimentação é uma das experiências humanas mais completas que existe. Comer alguma coisa não é apenas mastigar e engolir. Tudo aquilo que ingerimos traz consigo escolhas pessoais, processos culturais, histórias, tradições e relações sociais, às vezes de origens que nem imaginamos. Por isso a gastronomia é uma atividade tão fascinante e enriquecedora — e, ao mesmo tempo, desafiadora.
Praticamente minha vida inteira foi construída dessa forma. Comecei servindo e, hoje, lidero a expansão de uma das redes mais tradicionais da região Sul pelo centro do Brasil. E essa jornada passou por várias dessas culturas que moldam a gastronomia e a forma como nos relacionamos com ela. Nos anos 1980, eu ainda não pensava tanto nisso. Trabalhava na madeireira do meu pai, no interior do Paraná, até que, aos 21 anos, decidi encarar o mundo e buscar minha realização pessoal. Cheguei em São Paulo e recebi a oportunidade de ser garçom no Fogo de Chão.
O lugar já era essa mostra viva da cultura da gastronomia: pegou a tradição do churrasco gaúcho e a espalhou pelo país e pelo mundo. Estava em plena expansão naquele momento. E eu abracei aquela oportunidade para me dedicar, aprender e crescer junto com a rede. Em um ano e meio de trabalho, tornei-me gerente de loja. Depois, virei gerente regional de seis unidades. Após dez anos, eu já tinha dez restaurantes sob minha responsabilidade, como diretor de operações no Brasil. Um crescimento enorme em apenas uma década. Mas não parou por aí. Em 2009, fui promovido a presidente de operações, onde fiquei até 2016. Fiz parte da internacionalização da rede pelos Estados Unidos, onde chegamos a listá-la na Nasdaq. Um passo gigante para aquele jovem que começou como garçom lá em 1987.
Mas a vida dá asas para a gente voar. Que nem um passarinho, que um dia resolve se aventurar e bater suas asas em outros céus e campos — ou então voltar para o ninho. Foi o que fiz em 2016. Depois de tanto tempo viajando, trabalhando, longe da família, decidi que queria ficar mais perto dos meus e experimentar outros horizontes. Fiz uma tentativa pela construção civil, mas aquilo não preenchia minha inquietude. As quase três décadas de gastronomia mostraram o que fazia sentido para mim. O problema era: como retomar? Ao sair, havia assinado um compromisso de não empreender por cinco anos com carne vermelha. E foi num desses voos que surgiu a resposta.
A colonização italiana foi muito forte no Centro-Sul do Brasil e moldou várias das nossas culturas e tradições — incluindo a gastronomia. No entanto, ela teve impactos diferentes em cada região. E apesar de tão presente em São Paulo, o que se servia à mesa aqui não era o mesmo do Rio Grande do Sul.
Na Serra Gaúcha, por exemplo, os colonos italianos trouxeram consigo a tradição das passarinhadas: eram grandes banquetes que tinham como prato principal os pássaros de médio e grande porte capturados nas matas. As festas celebravam a fartura da colheita e os frutos do trabalho. O desenvolvimento da criação de animais foi mudando essa tradição — e os pássaros foram sendo substituídos por pequenos frangos que passaram a receber o “apelido complementar” de al primo canto (ao primeiro canto). A ave, que era um pequeno galo, passou a ser chamada de galeto.
Nascia, aí, o galeto al primo canto. Uma tradição típica dos imigrantes italianos da Serra Gaúcha, que ganhou notoriedade a ponto de render negócios especializados: as galeterias, que têm o galeto como carro-chefe, servidos com outras delícias da culinária da Itália, e que logo se espalharam pelo Rio Grande do Sul. Em São Paulo, alguns estabelecimentos chegaram a oferecer essa iguaria em diferentes momentos. No entanto, a relação dos paulistas com o frango sempre foi da ave assada inteira — uma das redes de alimentação mais tradicionais do estado chama-se, literalmente, Frango Assado. E os próprios imigrantes cultivaram outros hábitos na região, como as massas e a pizza – algumas das melhores pizzarias do mundo, inclusive, ficam na metrópole paulista.
Embora já conhecesse o galeto, o conceito do galeto al primo canto e a sequência típica da culinária de imigração italiana só me foram apresentados em uma viagem a Porto Alegre. Naquela ocasião, visitei o Di Paolo do Boulevard Laçador, onde almocei e imediatamente me encantei por aqueles pratos.
A história do Di Paolo e do Paulo Geremia, seu fundador e líder, também me eram familiares, embora nunca tivéssemos uma proximidade. O que não imaginava era a quantidade de similaridades que encontraria: ambos crescemos e aprendemos tudo o que sabíamos num restaurante. Ambos começamos como garçons e nos tornamos empreendedores no setor gastronômico. Ambos eram e são apaixonados pelo que fazíamos – e fazemos. E com desejo de ir além.
Aproximamo-nos e logo estabelecemos uma sintonia que, depois, se tornaria sociedade. Propus ao Paulo a expansão do Di Paolo em São Paulo — o que era seu desejo também, mas faltava alguém para liderar esse trabalho. Em pouco tempo, o acordo estava selado e começava um novo capítulo na minha jornada — e que se tornou um dos maiores e mais incríveis desafios. Nosso propósito não era apenas vender galeto na maior metrópole da América Latina. Era oferecer um conceito por completo. Uma experiência que aproximasse o público do que era desfrutar da culinária típica dos imigrantes italianos da Serra Gaúcha, com a mesma artesanalidade e qualidade que os colonos colocavam em cada prato de comida no princípio do século 20.
Um prato que foi aprimorado pelo Di Paolo, seguindo a receita original da família Peccini, que criou a primeira galeteria do país, em Caxias do Sul, mas com novos temperos e modos de preparo. Isso levou a uma receita única, que se complementa com toda a sequência de maneira singular.
Mas se no Rio Grande do Sul não precisamos de mais delongas para explicar o galeto e sua sequência, em São Paulo a história era diferente. Alguns veriam o galeto como um frango barato e simples que se vende em padaria. Também não era a mesma coisa que você encontraria na Mooca ou em outros bairros de forte identidade italiana. Era preciso apresentar a experiência completa do galeto al primo canto, como da Serra Gaúcha, que agora poderia ser degustada em qualquer lugar — e com aquele mesmo gosto e qualidade. Toda a implementação foi acompanhada por um intercâmbio que permanece até hoje entre nossas unidades de outros estados com as do Rio Grande do Sul: churrasqueiros, garçons e nutricionistas do Rio Grande do Sul treinam o time. O galeto vem do mesmo fornecedor no estado, enquanto as massas, molhos e acompanhamentos são feitos em São Paulo, mas sob um rígido padrão de qualidade.
Nossa primeira loja, em 2017, foi na Avenida dos Bandeirantes, um ponto estratégico de alto fluxo que se conecta ao Aeroporto de Congonhas e às marginais, trazendo uma enorme visibilidade para a marca. O maior desafio, naquele momento, foi apresentar o conceito a um público que ainda não o conhecia. Com algumas adaptações no menu, como inserção de outras carnes, sobremesas e pratos, logo o êxito começou a se estabelecer — e o paulistano encontrou, perto de si, um pedaço da Serra Gaúcha e da sua cultura. Dois anos depois, chegamos ao bairro de Pinheiros, onde começamos a consolidar nossa expansão. Mas logo após a inauguração da terceira, no shopping Lar Center, veio a pandemia. A crise sanitária nos obrigou a segurar investimentos, mas acelerou nossa inovação: com a implementação rápida do delivery, garantimos a prestação dos serviços, levando para dentro da casa dos paulistas a qualidade do que fazemos.
Após o período mais agudo, demos início a um rebranding da marca, conectando-a definitivamente à sua identidade histórica e cultural da culinária da imigração italiana. Renovamos do layout das lojas às pratarias das mesas, estabelecendo um ambiente agradável, aconchegante e sem deixar nada a desejar diante das grandes marcas mundiais. Hoje, o galeto al primo canto, além de marca registrada da imigração italiana na Serra Gaúcha, é um sucesso também no centro do país. Já são seis unidades em São Paulo, sendo três endereços na capital paulista e mais três no interior (em São José dos Campos, Sorocaba e Campinas). Temos a expectativa de inaugurar outras dez casas em estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Distrito Federal, num investimento de mais de R$ 25 milhões pelos próximos anos.
Mais do que um negócio, é uma experiência completa. Uma viagem aos tempos dos colonos, às suas culturas e tradições, por meio dos sentidos. Cada sequência é uma oportunidade de conhecer um pouco do que os próprios imigrantes consumiam – e que moldaram a forma como uma região inteira passou a vivenciar em termos de alimentação. A passarinhada que virou galeto — e que deu asas a um empreendimento nascido das mãos de um visionário como Paulo Geremia, com quem tive a alegria de me encontrar, associar e hoje, também, ser parte deste sonho, que deu novo sentido à minha vida pessoal e profissional.
Pelo alimento, perenizamos essa tradição histórica, geramos experiências únicas e contribuímos para o desenvolvimento de milhares de famílias pelo Brasil. Por isso tudo, a gastronomia é tão fascinante.
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