Documentário da Netflix pode ser visto como um alerta cibernético sobre os riscos de ataques hackers – ou como um inusitado compilado de lições de marketing
No ar desde meados de abril na Netflix, o documentário sobre a ascensão e a queda do site norte-americano de infidelidade conjugal Ashley Madison pode ser visto como um alerta cibernético sobre os riscos de ataques hackers – ou como um inusitado compilado de lições de marketing. Como são essas que nos interessam, acompanhe:
Lição #1: seu concorrente não é quem você pensa. Site e aplicativo voltado a promover encontros extraconjugais apenas entre pessoas casadas, o Ashley Madison (AM) poderia perfeitamente enxergar Tinder, Grindr e que tais como concorrentes. Mas foi rápido a perceber que seus competidores eram bem menos evidentes. O primeiro? O escritório. Existe lugar mais perfeito para engatar um romance clandestino do que o ambiente corporativo, onde as pessoas conviverão por oito horas diárias? Segundo: a Bíblia. Um assunto tabu como a infidelidade num país puritano como os Estados Unidos tinha nas sagradas escrituras um óbvio oponente. Eu ainda acrescentaria um terceiro player: o divórcio. Às vezes é mais difícil romper um relacionamento do que encontrar um par, como dizia o psicanalista Contardo Calligaris (1948-2021). Então, matrimônios meio mornos e arrastados podem ser tudo o que um site como o AM precisa; convivências infernais e que caminham para o rompimento, não.
Lição #2: seu slogan diz muito sobre você. O AM teve dois bordões, e cada um realçava um posicionamento. O primeiro soa especialmente bem em inglês: “When monogamy becomes monotony” (“quando a monogamia se torna monotonia”). Aproveitava-se da semelhança de sonoridade entre duas palavras-chave para indicar a quem se destinava. O segundo enfatizava a recompensa, e não o problema: “A vida é curta. Tenha um caso”. Mais hedônico e aberto, mostrava que mesmo os integrantes de casais felizes poderiam se permitir uma aventura.
Lição #3: se não pode fazer propaganda, faça relações públicas. As mídias tradicional e alternativa, como os canais OOH, recusaram os anúncios do site. O que fazer? Transformá-lo em pauta jornalística dessas mesmas mídias. O CEO do AM foi entrevistado em diversos talk shows e noticiários dos Estados Unidos, dispondo de espaço privilegiado para publicidade totalmente gratuita.
Lição #4: regras offline valem online. Bares isentam mulheres de consumação. O AM cadastrava-as sem custo, enquanto cobrava dos homens, maioria absoluta de interessados no serviço.
Lição #5: às vezes, o diferencial não está no preço, e sim na forma de cobrança. O AM não cobrava assinaturas dos homens, e sim um fee por interação. Ou seja, a aderência tendia a crescer à medida que o site se mostrava mais útil. Foi isso, aliás, que deu margem a uma fraude: a criação de perfis femininos falsos encarregados de trocar palavras com os assinantes e, assim, aumentar artificialmente suas faturas. Excluída essa malandragem, o modelo de receita era digno de aplauso.
Agora você já pode assistir ao documentário com olhos de marketeiro (a). Ou mesmo dar uma olhada estritamente profissional no site da AM – que, aliás, tem uma versão brasileira.